Com esta publicação queremos homenagear e parabenizar o AMIGO Rafa pelo merecido prêmio que recebeu, classificado entre centenas de contos de jovens escritores.
O velório de Urgolino
Em uma época na qual o telefone celular era algo impensável, televisão um luxo para gente rica e a energia elétrica estava disponível somente nos centros urbanos, Urgolino vivia na zona rural de um isolado município do sertão nordestino.
Urgolino era um homem de hábitos simples. Acordava bem cedo, antes de o sol nascer, buscava água no riacho próximo de sua casa, checava como estavam as galinhas e os porcos, tomava seu café e ia trabalhar na pequena porção de terra que com tanto custo conquistou. Parava somente para almoçar a marmita que sua velha companheira Ana nunca deixava faltar e logo retomava o trabalho, indo embora quando começava a escurecer.
Depois de se banhar, geralmente jantava ouvindo o que Ana lhe contava sobre como tinha sido seu dia. Normalmente o falatório interminável da esposa abordava histórias da vida dos outros, reproduzindo o que ouviu das comadres que ela encontrava na venda, na igreja ou quando ia lavar roupa.
Quando Ana cansava de falar, Urgolino se acomodava na rede, onde balançava e enrolava seu cigarrinho de fumo, curtido com lentas tragadas. Enquanto contemplava as estrelas, o caboclo recordava os tempos da mocidade e deixava que pensamentos vagassem pela memória até adormecer.
Um dia, pouco antes do almoço, Urgolino não estava se sentindo bem. Encostou embaixo de uma árvore e adormeceu. Ao trazer a marmita, Ana estranhou o caboclo deitado. O velho podia não gostar de falar, mas deixar de trabalhar não era algo que ele fazia.
Apreensiva, Ana chegou perto de Urgolino e, dando uma leve chacoalhada nele, disse:
- Urgolino, você tá bem? Acorda homem!
Como o caboclo não reagia, Ana tentou ser mais contundente:
- Para de brincadeira, Urgolino! Acorda, velho! Já falei para você acordar, maldito!
Nada de Urgolino se mexer. Desesperada Ana começou berrar.
Quando um vizinho da roça do lado chegou, Ana estava desconsolada com o marido no colo:
- Ai Zé, o Urgolino morreu! Por que Deus foi deixar isso acontecer? O que vai ser de mim agora?
Rapidamente a notícia se espalhou. No vilarejo e em cada roça da região só se ouvia uma coisa:
- Morreu?
- Morreu!
- Então vamos beber o morto.
Perdendo apenas para as Festas Juninas e Folia de Reis, um velório certamente era um dos grandes eventos sociais na região.
Por força da tradição, a família do morto deveria receber amigos, vizinhos e até quem não conhecia para velar o falecido. Durante a vigília, normalmente eram servidas bebidas e algo para beliscar.
E assim começou uma procissão para a casa de Urgolino.
O caboclo estava sobre a mesa da sala dentro de um caixão improvisado às pressas.
Em dias assim, as carpideiras eram presença certa. Vestidas de preto, essas mulheres, que pareciam surgir do nada, choravam, gritavam, rezavam e cantavam, não necessariamente nessa ordem. Quanto mais prestigiado o velório, maior era o volume do barulho por elas provocado.
Como a casa estava cheia, naquela noite as carpideiras capricharam na ladainha. Mesmo quem estava bem distante conseguia ouvir o seguinte coro:
Ô Dona Ana olêlê,
Eu vim aqui pra sabê,
O caixão sem tampa, não tampa,
E sem bebê, nóis não canta!
Após pronunciar algumas vezes a referida estrofe em tom melódico, as carpideiras e os convidados comiam um pouco de batata doce e dos biscoitos de polvilho que eram servidos juntamente com generosas doses de cachaça ou café. Depois tudo se repetia.
Aos poucos as pessoas passaram a sair da sala. De vez em quando alguém se aproximava do corpo do caboclo e voltava depois de ficar alguns minutos.
A partir de então começaram murmúrios de que o defunto estava fedendo.
Nem mesmo Ana, que no começo do velório não saía do lado do corpo, preferia ficar na cozinha ou receber os pêsames do lado de fora de casa.
Ainda assim, alguns pareciam fazer questão de que o olfato certificasse o que o povo estava dizendo.
No meio da madrugada, a comadre Severina resolveu se aproximar de Urgolino para supostamente lhe prestar uma homenagem. Famosa por comer bem e pelos efeitos colaterais que isso lhe causava, Severina aproveitou a privacidade que o local lhe proporcionava e, seguindo o exemplo dos outros, se aliviou dos gases que a incomodavam, soltando uma silenciosa e fétida flatulência.
Nesse momento, com cara de nojo e bastante irritado, Urgolino levantou e gritou:
- Meu Deus do céu! Acordei no inferno! Que zoeira é essa? Vão peidar na casa de vocês!!!
Com exceção de algumas pessoas que estavam no chão, desmaiadas por força do susto, em questão de segundos a casa ficou vazia e silenciosa. Bem de longe era possível ouvir gritos de horror e desespero daqueles que ainda corriam.
Nos meses seguintes o principal assunto na região foi o que aconteceu no velório do Urgolino. O “dotô” explicou que o caboclo sofria de catalepsia, seja lá o que for isso, mas o povo jurava que Urgolino tinha batido as botas e, por causa de um pacto com o cramunhão, voltou a viver.
De qualquer modo, depois do que aconteceu no velório do Urgolino, o ato de beber o morto nunca mais foi o mesmo naquela região.
Urgolino era um homem de hábitos simples. Acordava bem cedo, antes de o sol nascer, buscava água no riacho próximo de sua casa, checava como estavam as galinhas e os porcos, tomava seu café e ia trabalhar na pequena porção de terra que com tanto custo conquistou. Parava somente para almoçar a marmita que sua velha companheira Ana nunca deixava faltar e logo retomava o trabalho, indo embora quando começava a escurecer.
Depois de se banhar, geralmente jantava ouvindo o que Ana lhe contava sobre como tinha sido seu dia. Normalmente o falatório interminável da esposa abordava histórias da vida dos outros, reproduzindo o que ouviu das comadres que ela encontrava na venda, na igreja ou quando ia lavar roupa.
Quando Ana cansava de falar, Urgolino se acomodava na rede, onde balançava e enrolava seu cigarrinho de fumo, curtido com lentas tragadas. Enquanto contemplava as estrelas, o caboclo recordava os tempos da mocidade e deixava que pensamentos vagassem pela memória até adormecer.
Um dia, pouco antes do almoço, Urgolino não estava se sentindo bem. Encostou embaixo de uma árvore e adormeceu. Ao trazer a marmita, Ana estranhou o caboclo deitado. O velho podia não gostar de falar, mas deixar de trabalhar não era algo que ele fazia.
Apreensiva, Ana chegou perto de Urgolino e, dando uma leve chacoalhada nele, disse:
- Urgolino, você tá bem? Acorda homem!
Como o caboclo não reagia, Ana tentou ser mais contundente:
- Para de brincadeira, Urgolino! Acorda, velho! Já falei para você acordar, maldito!
Nada de Urgolino se mexer. Desesperada Ana começou berrar.
Quando um vizinho da roça do lado chegou, Ana estava desconsolada com o marido no colo:
- Ai Zé, o Urgolino morreu! Por que Deus foi deixar isso acontecer? O que vai ser de mim agora?
Rapidamente a notícia se espalhou. No vilarejo e em cada roça da região só se ouvia uma coisa:
- Morreu?
- Morreu!
- Então vamos beber o morto.
Perdendo apenas para as Festas Juninas e Folia de Reis, um velório certamente era um dos grandes eventos sociais na região.
Por força da tradição, a família do morto deveria receber amigos, vizinhos e até quem não conhecia para velar o falecido. Durante a vigília, normalmente eram servidas bebidas e algo para beliscar.
E assim começou uma procissão para a casa de Urgolino.
O caboclo estava sobre a mesa da sala dentro de um caixão improvisado às pressas.
Em dias assim, as carpideiras eram presença certa. Vestidas de preto, essas mulheres, que pareciam surgir do nada, choravam, gritavam, rezavam e cantavam, não necessariamente nessa ordem. Quanto mais prestigiado o velório, maior era o volume do barulho por elas provocado.
Como a casa estava cheia, naquela noite as carpideiras capricharam na ladainha. Mesmo quem estava bem distante conseguia ouvir o seguinte coro:
Ô Dona Ana olêlê,
Eu vim aqui pra sabê,
O caixão sem tampa, não tampa,
E sem bebê, nóis não canta!
Após pronunciar algumas vezes a referida estrofe em tom melódico, as carpideiras e os convidados comiam um pouco de batata doce e dos biscoitos de polvilho que eram servidos juntamente com generosas doses de cachaça ou café. Depois tudo se repetia.
Aos poucos as pessoas passaram a sair da sala. De vez em quando alguém se aproximava do corpo do caboclo e voltava depois de ficar alguns minutos.
A partir de então começaram murmúrios de que o defunto estava fedendo.
Nem mesmo Ana, que no começo do velório não saía do lado do corpo, preferia ficar na cozinha ou receber os pêsames do lado de fora de casa.
Ainda assim, alguns pareciam fazer questão de que o olfato certificasse o que o povo estava dizendo.
No meio da madrugada, a comadre Severina resolveu se aproximar de Urgolino para supostamente lhe prestar uma homenagem. Famosa por comer bem e pelos efeitos colaterais que isso lhe causava, Severina aproveitou a privacidade que o local lhe proporcionava e, seguindo o exemplo dos outros, se aliviou dos gases que a incomodavam, soltando uma silenciosa e fétida flatulência.
Nesse momento, com cara de nojo e bastante irritado, Urgolino levantou e gritou:
- Meu Deus do céu! Acordei no inferno! Que zoeira é essa? Vão peidar na casa de vocês!!!
Com exceção de algumas pessoas que estavam no chão, desmaiadas por força do susto, em questão de segundos a casa ficou vazia e silenciosa. Bem de longe era possível ouvir gritos de horror e desespero daqueles que ainda corriam.
Nos meses seguintes o principal assunto na região foi o que aconteceu no velório do Urgolino. O “dotô” explicou que o caboclo sofria de catalepsia, seja lá o que for isso, mas o povo jurava que Urgolino tinha batido as botas e, por causa de um pacto com o cramunhão, voltou a viver.
De qualquer modo, depois do que aconteceu no velório do Urgolino, o ato de beber o morto nunca mais foi o mesmo naquela região.
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